Era inteligente aquela mulher. Curiosa, gostava de aprender coisas novas. Era daquelas que nunca dizia “Na minha época...” como uma expressão de menosprezo com as gerações mais novas. Gostava de tecnologia, queria aprender as coisas novas mesmo que não as utilizasse, só pelo gosto de aprender. O pessoal do suporte técnico gostava dela porque sempre pegava as coisas de primeira. Era inteligente aquela mulher.
Era sábado e ela tinha trazido trabalho para casa, coisa que não costumava fazer. Mas, desta vez, não teve jeito. Então acordou cedo, sentou-se de frente ao computador, que rodava suave obedecendo suas mãos. Melhor acabar logo para aproveitar o que restasse do dia.
Agora tinha uma aliada, a inteligência artificial. Tanta gente reclamando, com medo de perder o emprego, e ela nem aí. Abraçou a tecnologia, chamou-a de minha, e foi à luta. Tinha uma enorme planilha para analisar, precisava saber de valores, de tendências, de possíveis equívocos. Subiu o arquivo para a IA e pediu que se fizesse uma análise geral. Gostou do que viu, achou que a análise foi boa. Especialmente, que a análise foi rápida. Coisa boa, muito boa, porque era sábado, ela não gostava de trazer trabalho para o fim de semana, e queria aproveitar bem o dia.
Da primeira análise ela passou para a segunda, que facilitou a terceira e rapidamente chegou onde queria. Em poucas horas de uso habilidoso da IA tinha feito o trabalho de dois dias. Foi quando começou a notar o barulho da casa.
Crianças correndo para lá e para cá, dando aqueles gritinhos por causa da brincadeira com as arminhas de água. Sentiu aquele cheiro de carvão acendendo. Ouviu o tilintar de talheres e pratos juntando-se à algazarra das crianças. Ouviu a voz dos primeiros amigos chegando.
A IA tinha salvado boa parte do seu dia, resolveu respirar um pouco antes de salvar o trabalho e descer. Abriu o vinho predileto e não o bebeu, deixou-o descansar. E lhe subiu uma curiosidade.
Sentou-se de novo diante do computador, convocou a IA e resolveu brincar, meio curiosa, meio zombeteira. No prompt digitou “Qual é o significado da vida?”. Resposta vaga, frases bonitinhas, destas que abundavam nas redes. Não ficou impressionada com a velocidade da análise nem com a utilidade das generalidades.
Resolveu arriscar mais uma vez. No prompt, digitou “Quais são as coisas mais importantes da vida?”. Novamente brotaram generalidades: bons relacionamentos, sensação de pertencimento, propósito. Notou que não havia nenhuma sugestão de como alcançar essas coisas todas.
Nos minutos em que se perdeu naquele prompt, o vinho tinha oxigenado. Cerimoniosamente se levantou, pegou a taça da qual mais gostava e derramou o carmim líquido. Não bebeu.
Girou a taça lentamente, sentiu o buquê. Ficou olhando a intensidade da cor. Inclinou a taça e examinou a borda do líquido em contato com o cristal.
Cada vez que fazia estas coisas pensava em outra. Nos relacionamentos que tinha: filhos, irmãos, mãe, amigos. Pensou no sentimento de pertencimento que tudo isso trazia. Pensou na comida que combinava com o vinho em sua mão. E a algazarra dos amigos, das crianças, do tilintar de pratos e talheres, tudo a encheu de alegria. Perguntou-se por qual motivo nunca tinha enxergado uma taça de vinho como um símbolo perfeito destas coisas todas. Mas estava tudo junto ali, amalgamado em seus dedos.
Não bebeu. Bebericou. Pequenos goles de felicidade. Depois sorveu. Sentiu-se pertencida, sentiu um leve frêmito já que num minuto desceria para participar do festim. Só ficou com um pouco de pena do prompt da IA, porque nunca sentiria o que ela estava experimentando.
O único caso em que ela ensinou para a IA como são os símbolos das coisas.
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EDITORIA | .felipeurbano
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